quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Porque ir é preciso...

Bom dia!
Começo este texto, escrito, desabafo com essa cordial saudação, mas não se engane, este é um texto de despedida.
Eu preciso ir e vou, só não sei pra onde, não sei ainda se será por vontade própria, mas sei que será doloroso partir. Eu tenho tentado camuflar a dor e dizer de maneira despretensiosa a meus amigos e amigas que irei pra Finlândia, mas a Finlândia é só uma alegoria, poderia dizer Suécia, Islândia, Suíça ou qualquer país que cremos ser mais igualitário. Mas a verdade é que apenas supomos, não creio realmente que seja mais fácil viver em outro país, pois problemas estão em todos os lugares.
Me despeço porque, infelizmente, não há lugar nessa sociedade para mim. Nem adianta dizer que isto é radicalismo, que o mundo está mudando, que estamos construindo algo que daqui há algumas gerações será melhor, etc. Desculpe, isso não basta. Estou falando de racismo mais a vez, estou falando dos arrastões no fim de semana, estou falando das medidas de segurança e dos discursos de Estado sobre essas medidas, estou falando sobre justiceiros e sobre o posicionamento da "sociedade de bem" nas redes sociais, estou falando do meu desespero em ler sobre tudo isso.
Como pode ter lugar para mim nessa sociedade se há menos de um ano uma mulher negra foi presa no Ceará, acusada de ter assassinado uma turista branca italiana, quase sem direito a defesa, apenas porque a justificativa dela para estar no Ceará era estar de férias. Suspeitaram pq ela não tinha álibi, era negra, estava viajando sozinha, passava os dias lendo à beira da piscina e era doutoranda. Eu poderia ser essa mulher, não, eu sou essa mulher, pois amo viajar, viajo muito sozinha, amo ler, sou negra e estou na mesma faixa etária que ela.
Eu quero ter filhos, não vou entrar nos méritos da questão da afetividade da mulher negra, apenas vou tocar em.um ponto: como eu posso pensar em ter filhos nessa sociedade? Eu sou negra, meu filho será negro. Vejam, por favor, como estão tratando as crianças negras. Vejam o que estão supondo ou fomentando no imaginário social sobre as crianças negras! Vejam e façam algo. Porque não é responsabilidade minha lutar contra todo o racismo, contra todo ódio que vem sendo destilado sobre essas crianças, meus futuros filhos, meus irmãos, primos, pai, avô. Eu não tenho escapatória, a não ser lutar contra isso, mesmo que seja pra manter minha família viva. A gente está lutando pra sobreviver e podemos partir a qualquer momento.
Eu tenho irmãos que são meus tesouros, um professor e músico, outro cientista da computação. São negros. No fim de semana que fez o maior frio aqui no Rio de Janeiro , com o coração sangrando eu orientei um deles a não usar casaco de capuz na rua. Homens negros não têm direito a isso. Eu tenho sobrinhos negros, lindos, duas crianças maravilhosas, um de 5 e outro de 7, os dois lindos, cultuadores de orixá e super sensíveis. Tenho dois irmãos que renasceram para o orixá no mesmo "barco" que eu. Um já tem 10 anos e o outro fará 10 no próximo mês. Há pouco tempo o pai de um deles, também com o coração sangrando, orientou ao filho a não manter as mãos escondidas em situação com policiais, uma criança de 10 anos...
Alguém tem noção do que significa para um pai ter que dizer isso ao filho? Alguém tem noção de como ter que fazer isso o feriu? Crianças negras não podem ser crianças, a marca de sua pele nos impõe limites. Homens negros não podem ser apenas homens, a marca de nossa pele nos impõe limites. A Mulher negra, ah... A mulher negra! Além de não podermos ser apenas mulheres, temos que conviver com todas essas perdas, toda essa dor e salvar o que for possível.
Podemos ser violentadas, podemos ter menores salários, podemos ser chacota por conta de nossa cor, cabelo, corpo, riso...
Um agente do Estado mencionou que um jovem não pode sair de São João de Meriti sem dinheiro para passar o dia na praia. Ora, eu saio de São João de Meriti todos os dias, estou, exatamente agora, num tremendo engarrafamento. Alguém sabe quanto eu tenho no bolso?
Então, se saio para trabalhar, para transformar meu esforço, meu conhecimento, minhas habilidades profissionais em moeda, tudo bem. Longe da praia eu posso transitar, mas se eu quiser ir a praia, não?
Quer dizer que ainda hoje a população negra só serve enquanto estiver disponível pra ser moeda?
Que lugar eu tenho?
Eu tenho outros primos, açougueiros, pastores, assistentes administrativos, tenho primos desempregados, tenho irmãos de santo, tenho a mim mesma e essa sociedade não nos quer, nao nos cabe. Para ela, esses homens são apenas um tipo de suspeito padrão e ninguém se importa em discursar da maneira que aumente esse estigma.
São imagens e discursos que vulnerabilizam a população negra.
Eu preciso mesmo ir, porque se não posso amar, não posso ter lazer, não posso ter filhos, não tenho acesso a estudo e trabalho com dignidade (a não ser que eu me esforce dez vezes mais que qualquer pessoa branca) o que me resta?
Meu único direito garantido desde a escravidão é trabalhar, desde que eu não sonhe em sair da pobreza. E é por isso que eu Brigo (atualmente com bem menos forças) com meus amigos dizendo que o problema da justiça social não é econômico. Pois é justamente a economia, o capitalismo, que mantém essas disparidades que nos hierarquizam.
Mas eu cansei de brigar, cansei, gente. Eu preciso ir antes que me matem ou antes que matem o que ainda resta de amor em mim.
Aos que foram tocados por estas palavras, façam algo, não por mim, mas por cada um de vocês, pra erradicar essa doença que nos têm matado a todos e todas. Aos que acharam radicalismo ou bobagem espero que não tenham que aprender da forma mais cruel sobre tudo isso que falo.
Eu não vou entrar em debates, não vou argumentar sobre isso. Hoje, eu só quero partir.
Desejo que alguém aí tenha um bom dia.
22/09/2015

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